Wednesday, October 01, 2008

Para Vitor e João

Agora o sol se pôs e vai começar a ecoar no escuro o que o amor me disse: que sou um homem do meu tempo, que o que me dá ou pode me dar prazer é o meu rumo, o rumo aonde levam todas as placas que indicam os fluxos dessa dimensão. - A dimensão dos eus avulsos, dos egos esgaçados, esclareceu o amor. Conheço uma pessoa que ficou para trás e acorda há anos todo dia ao lado da mesma pessoa. Ela vive numa dimensão passada. Quando acontece uma coisa assim, e está acontecendo, é que os leigos e os cegos acham que estão no controle do que lhes acontece.

Eu me separei do amor quando meu coração ameaçou ficar cristalizado de pureza. - A gente tenta fugir dessa dimensão, disse-me o amor, mas acaba sempre voltando para ela. É impossível ser feliz sozinho? É impossível ser feliz sozinho. Você é feliz? Sopra um vento alto que atravessa as folhas das árvores. As árvores balançam e às vezes voam. As flores caem maduras.

E então eu disse ao amor: não estou te traindo. Porque amor é inclusive aceitar que não é amor aquilo que sempre se pensou que era o amor. E não existe nem nunca existiu um só tempo, nem nunca uma só dimensão, nem nunca um coração que batesse sempre igual. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

A vida é uma vastidão sem fim, povoada e deserta, mãe e hostil, e o que a faz são vasos, como veias, comunicantes. O sangue somos nós e tudo se mexe comunicando entre si imagens, cores e sentimentos. Uma emoção sozinha tem o poder de fundar uma dimensão: o movimento mais primário e mais infantil é afirmativo. E o amor é uma criança tão bela, capaz de jurar até a morte antes de se distrair com outra coisa. E nós somos todos crianças que crescem para a vida e para a morte. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

Você descreve as coisas de um jeito tão bonito que parece fazer com que elas fiquem maiores e mais claras. Mas o que é uma coisa? Quando você diz você, parece estar dizendo eu. Eu falo por nós, os outros. E você fala por eles, os mortos. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

Você é apaixonado pela morte porque vive do que vai morrer. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

Eu sou apaixonado pela vida porque vivo do que vou morrer. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

É claro que quando tenho medo de você é porque descubro onde é que eu mesmo me ameaço, e é tão grande ameaçar-se, e tão profundo... Por isso existe entre nós esse afrontamento recíproco, essa luta amistosa. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

E numa ode eu digo para cima: oh, Deus, que estás em tudo, sopra o meu olho para que nunca eu veja nada claro como tu és e assim possa continuar alheio aos teus braços que me levam, como esse vento, essa sorte, como tudo o que vejo se desencadeia em frentes e reveses, e começa e termina, e finda e inicia, e embala num vice-versa o começo e o fim. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

Estou numa biblioteca e acabei de ouvir ao longe, lá na rua, umas pessoas cantando parabéns a você. Parei o que estava fazendo para escutá-los, me deu uma alegria tão grande... Para minha sorte (porque eu queria saber o nome da pessoa que estava de aniversário), eles cantaram também: “É pique, é pique, rá-tim-bum ---- Vitor! Vitor! Vitor!”

E uma mãe, num apartamento vizinho, disse assim ao seu filho pequeno o que ouvi pela janela de minha casa: “Não briga com as meninas, João. Tem que dividir com os amigos, João”.

2 Comments:

Blogger Rodrigo Monteiro said...

Eis que uma vez eu li que, quando um ator aponta para a lua, não interessa o dedo do ator e seus músculos, e sua pele, e sua unha e sua forma, e sua gordura, brilho, pêlos. Tampouco interessa a lua, e seu elipsoidal na rotunda colorida, e seu lago, seu lado escuro, brilho, pêlos. Mas interessa a energia que faz com que exista a lua e faz com que o aponte do dedo tenha algum sentido de existir igual ou tão importante quanto o da lua, brilho, pêlos.
Poucos conseguem ver essa energia nem verde Luke Skywalker, nem vermelha Darth Vader, mas sem cor e, ao mesmo tempo, brilhante de cuja intensão emana um pó que faz com que o oxigênio que respiramos seja droga para enfrentar o dia.

E desde então não fico um só dia sem pensar que já não caminho sozinho.

(valeu pela visita. please, volte sempre!)

10:33 PM  
Blogger Rodrigo Monteiro said...

aqui está o conto O VENDEDOR DE PALAVRAS.

http://www.releituras.com/ne_freynol_vendedor.asp

1:30 PM  

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