Wednesday, March 12, 2008

O último dia








No dia em que seria finalmente assassinado, o jovem ele saiu do hotel onde passara a noite para sentir seu último dia no rosto. Ele não imaginara que estaria nublado no último dia, mas sentia com prazer ansioso o vento bom respingando-lhe gotas curtas de chuva. Não longe dali, sentado em frente ao computador, está o escritor que preferiu não dar nome a seu personagem, um jovem que vaga por esta mesma cidade, dormindo em hotéis, sozinho ou acompanhado.
O jovem ele tem um encontro marcado para esta noite, e decide providenciar as flores. Ele sempre leva flores aos encontros, de preferência margaridas, que têm o miolo amarelo. A floricultura que encontra depois de caminhar algumas quadras ao deixar o hotel da noite anterior é em frente ao apartamento do escritor que, durante um dos cigarros que foi fumar na janela, viu um rapaz aproximar-se caminhando dos vasos que cobriam a calçada. Ele cheirou com cuidado e olhos fechados todas as flores até escolher um buquê de margaridas. Despediu-se da velha que recebeu o dinheiro amassado desejando bom-dia, enquanto o escritor voltava para a frente do computador. Encarando as letras nas teclas, o escritor decidiu: ele precisa morrer hoje. Como matá-lo? E ainda: o que será matá-lo? Escreveu que o jovem ele encontrava uma floricultura na calçada e comprava um buquê de margaridas. Ele viera de uma cidadezinha atrás da liberdade que as novelas levavam pela televisão. São Paulo, porém, era muito feia, o que acabou fazendo com que o jovem ele encontrasse nas floriculturas aquela idéia que tinha de liberdade. Principalmente nas margaridas, que têm o miolo amarelo. Tudo muito irreal, pensa o escritor, satisfeito. Um rapaz vindo do interior passar os dias vagando por São Paulo atrás de flores, dormindo em hotéis, apenas esbarrando em estranhos como se não precisasse de ninguém... Mas o que era mais irreal em São Paulo do que ser escritor? E o escritor, por ser tão real, não era escritor. Trabalhava os dias inteiros na Secretaria Municipal de Transportes, preenchendo fichas sobre os gastos dos consertos das vias públicas. Pegava o metrô cheio todos os dias, de manhã e à noite, entre banhos para acalmar a poluição e a tensão que iam se entranhando nos músculos no correr dos dias, de vez em quando reparando em rapazes que caminhavam como se não tivessem rumo. Foi observando-os que resolveu escrever esta história para descansar aos domingos.
Hoje é domingo. Um domingo nublado, garoa fina espalhada pelo vento que começa a esfriar a cidade e provocar no escritor esse desejo de matar seu personagem. Estranho que o mesmo dia e as mesmas nuvens e as mesmas gotas provoquem no jovem ele uma sensação completamente diversa da que sente o escritor: o jovem ele recebe todo aquele último dia com uma sensação boa de que algo está para acontecer logo mais, algo maior do que a liberdade dos miolos amarelos das margaridas que carrega para presentear o estranho que o receberá no fim da tarde. Sente até uma inveja difusa dos que têm uma casa na cidade grande, traindo um pouco, mas sem perceber, a idéia já transformada do que entende por liberdade. O escritor, enquanto isso, escreve, à mercê da angústia de não saber como vai acabar sua história. Seu personagem perambula sem saber quase nada sobre o destino fatal que o aguarda, já que o destino só existe para quem escreve. Escrever, pensa o escritor, é uma forma de ter destino fora dos dias passados na Secretaria de Transportes, mesmo que muitos escritores não pensem assim, o que torna muito mais livre ainda o ato amarelo de escrever. Escrever pode também ser roxo, azul, verde, laranja, preto no branco. Mas o amarelo que o escritor realça nas margaridas do jovem ele é seu esconderijo na ficção. Ele repousa ali, calado, inerte como um miolo de flor.
O último dia vai passando e o jovem ele vai gastando-o como mais lhe apraz. Come um cachorro quente em outra calçada, vai ao cinema. Assiste a um filme no escuro, sem saber que está no centro de outra alegoria da liberdade que o escritor só tem quando está escrevendo. Ao final do filme as luzes se acendem, o jovem ele volta à rua com a mesma disposição com que entrou, solto, irreal e tão concreto como a carne do braço que belisca quando imagina num susto que nunca esteve em São Paulo, que nunca teve desejos de liberdade, que nunca lhe agradou o cheiro das margaridas. A dor do beliscão devolve a seu rosto a tranqüilidade de observar com idiferença a pressa dos passantes pela Paulista, e ele olha o relógio para calcular quanto tempo ainda tem antes do encontro marcado. O escritor olha o relógio: o dia passou rápido, os domingos sempre passam rápido, a liberdade é sempre fugaz. Lembra-se de que precisa ainda preparar planilhas para levar à Secretaria na segunda-feira e alterna as janelas na tela do computador: números, contas, cálculos e resultados antes de voltar ao texto que quer acabar ainda hoje. O escritor está cansado, mas quando pensa em seu personagem tão atento à hora do encontro resgata energia do reservatório livre: não quer deixá-lo esperando. E vai conduzindo o jovem ele pelas ruas da cidade grande e desajeitada, tentando fazer com que seus olhos irradiem um pouco de luz amarela nos edifícios altos e baixos e nas pessoas que caminham com os olhos incrustados no chão.
O jovem ele toma um café e lê o jornal de seu último dia. As notícias, como sempre, já estão velhas. Depois, encaminha-se para o endereço que o estranho lhe estendeu num pedaço de papel, alguns dias atrás, no metrô. A hora que vem chegando é a hora marcada e estava escrita acima do endereço. Ele toma o metrô e pára na estação mais próxima. Caminha até o prédio alto, empunhando as flores. Quando aperta o botão com o número do apartamento indicado no papel, um ruído eletrônico destranca o portão das grades de entrada. O jovem ele toma o elevador e, ao descer no décimo primeiro, segue a luz que sai pela fresta de uma porta entreaberta no corredor escuro. Prefere dar três batidas na porta antes de entrar. Ninguém responde. Ele entra e diz olá, mas a sala está vazia. Um cigarro queima pela metade no cinzeiro ao lado do computador ligado. O jovem ele repete a saudação e, envolto no silêncio que segue, senta-se numa poltrona. Deposita as flores em cima da escrivaninha e fuma o resto do cigarro aceso. Vai até a janela para observar a cidade com seu olhar amarelo e avista, lá embaixo, um vulto deixando o prédio e comprando, na floricultura que há em frente, as últimas margaridas antes que a velha florista encerre o expediente.
("O último dia" recebeu Menção Honrosa no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu 2007, promovido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É dedicado ao Roberto Vitorino, pelo Midnight Soul.)