Thursday, October 23, 2008

O encontro


Desde que nos mudamos para cá, coisas estranhas têm ocorrido conosco. Ainda agora encontrei minha filha Amanda quebrando um aparelho televisor. Nunca antes eu tinha visto ela fazer uma coisa dessas. Eram olhos desesperados. Suas mãos sangravam nuas e voavam para frente e para trás, num esforço louco para atingir as lâmpadas já estraçalhadas das válvulas televisivas. Levei-a ao hospital com os tendões macios em frangalhos, as veias arrebentadas salpicando sangue no estofado do carro, e agora suas mãos estão enfaixadas. O médico teme uma redução fatal de movimentos que pode inclusive afetar a escrita de Amanda pelo resto da vida. Este foi o episódio mais estranho que ocorreu desde que nos mudamos para cá. Mas também outros, como nossas escovas de dente levantando vôo e cebolas rolando à noite pelo chão dos corredores ainda sem quadros.
E eis que às vezes muito pouco basta: um descer-e-subir de escadas na casa nova basta para tentar me convencer de que quem está louco sou eu. Acabo de ver Amanda em seu quarto, e suas mãos estão normalíssimas – exatamente como nasceram, maiores apenas na proporção de sua recém chegada adolescência. Ela se chama na verdade Ana. O televisor está inteiro, ligado, e as escovas de dente estão, é o hábito, no armarinho do banheiro. As cebolas? Detesto cebolas! Como, então?... Terei imaginado? Sonhado? Enlouquecido? Às vezes é necessário um pouco mais para bastar: acabo de constatar que não tenho filhos, ora essa: moro sozinho, filho único, meus pais morreram há dois anos e as mulheres me faltam. Quando eu tiver uma filha quero que ela se chame Mariana. Oh, Deus! O que é isso? Por que esse impulso de escrever? Por que não deixa minha mão sangrenta largar essa pena maldita? Solta-me, diabo! O que pega fogo? Sinto cheiro de queimado, de fumaça viva! Que fumaceira é essa? EU estou pegando fogo! são os pêlos de minha pele que levantam as fagulhas! meus cabelos, os cílios e as chamas já começam a devorar meus olhos! Socorro! Por favor! O fogo lambe-me como a língua sem fala de um cachorro amigo e diz que a pena será a última a queimar, meus dedos já estão quentes mas sou forçado a escrever, meus pais estão vivos, socorro! Bem-vindos à minha escola. Tenho dez anos e meus comparsas hão de merecer louvores por seu bom comportamento em sala de aula. Meus irmãozinhos foram seqüestrados por dois homens malvados como só vi em meu sonho mais terrível. Sonhei com eles, encapuzados, acho que foi porque ontem à noite, no escuro dos meus olhos fechados no travesseiro, minha avó contou-me ao pé da cama o conto da menina dos fósforos: ela estava prestes a congelar ao relento de uma noite implacável e acendeu-os um a um para esquentar-se, para maravilhar-se, e com medo de voltar à casa sem o dinheiro que deveria ter ganho por vendê-los, morreu na rua de frio. Vinha daí também aquele fogo? Que fogo? Enquanto minha avó contava a história, imaginei para a menina o nome de Aurora, a filha que eu teria. Que besteira estou dizendo! Mamãe diz para não mentir nunca: meus irmãos estão bem. Somos quantos mesmo? Um, dois, três, quatro... Mas nunca basta, mesmo muito já é pouco, apenas um montinho na mão em concha: que dificuldade tenho para escrever! Pensei que era sono, mas estou é ficando cada vez menor, meus dedos diminuem a cada instante, alguém pergunta minha idade e mostro o indicador, o médio e o anelar. São dedos pequeninos de um bebê. Escuto com tímpanos quase virgens o ruído de passos. Quem vem lá? O som dessa pergunta é uma garatuja indecifrável no ar. Deve ser a babá, mas ainda só reconheço os vultos levemente pelo tom da voz. Como estou escrevendo se ainda não aprendi a escrever?!






(Foto: auroretranto sobre foto de Bjorn Sterri, Buenos Aires, agosto de 2008. O encontro é dedicado à Charlie, calle SORs)

Friday, October 17, 2008

O último tango em Paris

Qual dos dois morre no final? OS DOIS MORREM NO FINAL. O amor é uma morte, que rima com arte, mas é diferente. Não existe uma arte de morrer. Morre-se.

Wednesday, October 08, 2008

Eu sei que o amor é uma coisa boa

Atrás do balcão está o casal dono do bar. Pago meu consumo e pergunto se posso usar o telefone. A mulher vai discando os números que dito e ninguém atende.

Até que falo o nome de meu irmão e o marido se manifesta:

— Eu conheço esse cara, você é amigo dele?

— É meu irmão.

Ligamos para ele e meu irmão diz que virá. Enquanto ele não vem, converso com a mulher e ela me conta a história de duas filhas que teve. As duas nasceram com algum problema congênito (de pele, de tamanho) e ela as enrolou a certa altura em panos e...

Nessa altura parou de falar. Era uma mulher jovem e me olhava de um jeito estranho, como se não me entendesse mas ao mesmo tempo estivesse se sentido afetada pelo que eu estava dizendo.

— Vamos, acho que teu irmão já chegou, ela disse.

Meu irmão tinha mesmo chegado e estava conversando com o marido na porta do bar.

— Vamos?

O casal sentou no banco de trás. Meu irmão dirigia. O estranho era que estávamos numa auto-estrada, à noite escura, e quando perguntei para onde estávamos indo o marido disse que estávamos só dando um passeio.




(Para o Zeca, pelo Guri, que ainda não vi)

Wednesday, October 01, 2008

Para Vitor e João

Agora o sol se pôs e vai começar a ecoar no escuro o que o amor me disse: que sou um homem do meu tempo, que o que me dá ou pode me dar prazer é o meu rumo, o rumo aonde levam todas as placas que indicam os fluxos dessa dimensão. - A dimensão dos eus avulsos, dos egos esgaçados, esclareceu o amor. Conheço uma pessoa que ficou para trás e acorda há anos todo dia ao lado da mesma pessoa. Ela vive numa dimensão passada. Quando acontece uma coisa assim, e está acontecendo, é que os leigos e os cegos acham que estão no controle do que lhes acontece.

Eu me separei do amor quando meu coração ameaçou ficar cristalizado de pureza. - A gente tenta fugir dessa dimensão, disse-me o amor, mas acaba sempre voltando para ela. É impossível ser feliz sozinho? É impossível ser feliz sozinho. Você é feliz? Sopra um vento alto que atravessa as folhas das árvores. As árvores balançam e às vezes voam. As flores caem maduras.

E então eu disse ao amor: não estou te traindo. Porque amor é inclusive aceitar que não é amor aquilo que sempre se pensou que era o amor. E não existe nem nunca existiu um só tempo, nem nunca uma só dimensão, nem nunca um coração que batesse sempre igual. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

A vida é uma vastidão sem fim, povoada e deserta, mãe e hostil, e o que a faz são vasos, como veias, comunicantes. O sangue somos nós e tudo se mexe comunicando entre si imagens, cores e sentimentos. Uma emoção sozinha tem o poder de fundar uma dimensão: o movimento mais primário e mais infantil é afirmativo. E o amor é uma criança tão bela, capaz de jurar até a morte antes de se distrair com outra coisa. E nós somos todos crianças que crescem para a vida e para a morte. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

Você descreve as coisas de um jeito tão bonito que parece fazer com que elas fiquem maiores e mais claras. Mas o que é uma coisa? Quando você diz você, parece estar dizendo eu. Eu falo por nós, os outros. E você fala por eles, os mortos. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

Você é apaixonado pela morte porque vive do que vai morrer. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

Eu sou apaixonado pela vida porque vivo do que vou morrer. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

É claro que quando tenho medo de você é porque descubro onde é que eu mesmo me ameaço, e é tão grande ameaçar-se, e tão profundo... Por isso existe entre nós esse afrontamento recíproco, essa luta amistosa. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

E numa ode eu digo para cima: oh, Deus, que estás em tudo, sopra o meu olho para que nunca eu veja nada claro como tu és e assim possa continuar alheio aos teus braços que me levam, como esse vento, essa sorte, como tudo o que vejo se desencadeia em frentes e reveses, e começa e termina, e finda e inicia, e embala num vice-versa o começo e o fim. Mundo mundo vasto mundo! Mais vasto é o meu coração!

Estou numa biblioteca e acabei de ouvir ao longe, lá na rua, umas pessoas cantando parabéns a você. Parei o que estava fazendo para escutá-los, me deu uma alegria tão grande... Para minha sorte (porque eu queria saber o nome da pessoa que estava de aniversário), eles cantaram também: “É pique, é pique, rá-tim-bum ---- Vitor! Vitor! Vitor!”

E uma mãe, num apartamento vizinho, disse assim ao seu filho pequeno o que ouvi pela janela de minha casa: “Não briga com as meninas, João. Tem que dividir com os amigos, João”.