Monday, August 25, 2008

Fúria do corpo

Meu centro é uma palavra mole e úmida que toma forma e se desmancha, toma forma e se desmancha, é uma gema, um algodão doce, uma geléia viva. Mas as palavras escritas que ficam por mim fundadas são sólidas como sementes, duras e flechas como o levante de todos os meus membros em riste.

Monday, August 18, 2008

O resgate

Vem cá, deixa eu ver de perto essa boca recém desperta de barata, deixa eu desvendar com a língua esses caminhos encarquilhados de laca marrom. Quero lamber cada patinha até a ponta, sem saber e sem pudor dos bueiros onde esteve, cavando cócegas que será você capaz de sentir ainda? Fique aí deitado de costas como se não racionasse sobre que prisão o transformou, dance para mim seu balé nonsense de inseto e assim se ofereça sem ataque ao meu derreter com cuspe o incrustado tédio seu de existir há tanto tempo, há tanto tempo essas cascas escondendo o caldo precioso com que quero agora lambuzar minhas papilas todas, inebriar-te num rumo inédito dessa história tantas vezes contada, repetida, repetida, repetida nas rodas dentadas das fitas de um gravador girando em lábios automáticos as nossas falas esperadas. Esquece teu pai, tua mãe, tuas férias e a irmãzinha. Eu vou te alimentar. Esquece os comprovantes, teus planos de enredos sérios e vem fechar na minha essa tua mão que renasce da saliva com que vou agora te recuperando devagar do teu saracoteio de bicho asqueroso, transformando teu asco num abraço de nós dois na cama, assim, gemendo tudo que você já contou em língua difícil de praga, nada transformado em nada, devolva-se a mim com os braços que só vêm crescendo desde que você nasceu, com as pernas que você deitou ontem à noite para descansar, aqueles outros sonhos... Você ainda gosta de suco de laranja ou já não dá mais para voltar da merda?



(esse texto foi provocado por Bernardo Carvalho na oficina em Diamantina: viajar no primeiro parágrafo da Metamorfose de Kafka: “Certa manhã, ao despertar de sonhos intranqüilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos”.)

Friday, August 01, 2008




— A que interpretações pode levar a associação do amor à fragilidade?
— Quer dizer que o amor está frágil.
— Meu amor?
— Sim, o que sentes está frágil.
— E por que estará frágil?
— Porque é delicado.
— E por que é delicado? É um bibelô?
— Sim, é um bibelô. Enfeita e fica parado.
— E se fosse forte, o que seria?
— Um carro. Móvel e veloz.
— Amor móvel... Para onde iria? Quem ficaria pelo caminho?
— Quem você deixasse pelo caminho.
— E se não fosse frágil nem forte, como seria?
— Seria só amor.
— Como é só amor?
— É amor sem paixão. A paixão é a velocidade que deixa o amor forte ou frágil.
— A paixão é perigosa?
— A paixão é a vida mais viva do amor, é sua juventude e ilusão.
— O amor envelhece?
— O amor pode até morrer.
— E a paixão?
— A paixão é imortal e humorosa. Está sempre à espreita.
— E o amor?
— O amor é afirmativo. Ele se repete e bate o pé até a morte.
— E a paixão?
— A paixão é a fumaça de quem fuma.
— E o amor?
— O amor é uma coisa capaz de jurar por tudo que há no mundo.
— E se estivéssemos livres das associações desde o início?
— O amor se esvaziaria enquanto repetíssemos concentradamente: amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor.


(Foto: Julius, julho de 2008)